Vésperas de aposentadoria

Contava eu 29 anos de serviço no Banco. Acabara de voltar de férias inesquecíveis, aproveitadas com a Lara em excursões, até o último instante. Vivi dias de nababo, se tanta pretensão podia ter um bancário. Estranhamente, ainda sobrou dinheiro.
– Minhas próximas férias serão longas, muito longas – disse eu à mulher, logo que chegamos da viagem.
– Como assim? Não entendi.
– Entendeu, sim. Resolvi aposentar-me…
– Aposentar-se? Será mesmo? Duvido muito. Caxias como você foi e é!
Lara sorriu incrédula e voltou aos trabalhos rotineiros da casa, como se nada importante tivesse ouvido.
No Banco, no primeiro dia de trabalho, anunciei aos colegas:
– Vou pendurar as chuteiras. Quando completar um ano, deixo o Banco. Começo hoje mesmo a cancelar no meu calendário, com um xis bem vermelho, os dias que faltam para aposentar-me.
– Fala sério mesmo, Chefe?
– Muito sério.
– Mas o Chefe é novo, pode ainda trabalhar muitos anos. Conheço gerentes com mais de 40 anos de Banco e continuam cada dia mais ciumentos e agarrados ao cargo, como a uma bela jovem noiva.
– É verdade. Talvez tenham ficado noivos já em idade avançada. Meu interesse pelos cargos no Banco começou cedo, eu tinha apenas um quinquênio.
Então, comecei a ouvir com satisfação os comentários sobre a vida de aposentado, as possíveis viagens sem pressa de regresso, a visão de um recomeço de vida liberto de pressões de clientes, de inspetores, e da enxurrada de instruções, muitas redigidas em estilo gongórico e cruelmente despejadas nas agências às portas dos balancetes e balanços, épocas de maior acúmulo de serviços e preocupações.
E perguntava-me: será que não terei o direito de viver na ociosidade o resto de meus dias? Trinta anos de dedicação ao Banco, sem contar os dez ou mais em que estive em pequenos empregos antes! Após cerca de 40 anos de trabalho, a aposentadoria deveria chegar como prêmio e não como castigo.

II
Numa segunda-feira, bem cedo, cheguei ao Banco. Retirei da gaveta o calendário e com satisfação risquei mais três dias, o sábado, o domingo e a segunda, comprimindo a caneta quase a ponto de perfurar o papel, como era meu novo hábito fazer no início de cada semana. Sentia imenso prazer no ato. Não entendi o que de súbito ocorreu. Durante instantes, pareceu-me estar eliminando meus próprios dias de vida e restavam tão poucos. E eu os ia golpeando à direita, à esquerda, acima, abaixo, sem dó nem piedade. Menos um mês, menos dois, menos três… Aterrorizado, deixei cair da mão a caneta, atirei a folhinha no fundo da gaveta e nunca mais a toquei.
Aproximavam-se os derradeiros dias. Seria mentir se afirmasse que eu estava tranquilo. Aumentava-me o pesar de deixar o Banco e os colegas, bem como o temor do salto à vida ociosa. Os depoimentos de aposentados eram contraditórios. Uns se arrependiam de não ter deixado antes o emprego. Outros, se previssem o que os aguardava, jamais teriam se aposentado. Eu não sabia em quem acreditar, se nos pessimistas, se nos otimistas.
Quando assumi a gerência, apossei-me de desprezível legado que vinha passando de mão a mão pelos colegas que me antecederam, num período de mais de 20 anos. O legado era uma resistente pasta de cartolina rotulada com a inscrição ‘Estritamente Confidencial’ e fechada a sete chaves no armarinho de aço na sala da gerência. Continha a pasta memorandos de advertências, censuras e ameaças de demissão dirigidos pelos administradores a funcionários sobre emissões de cheques sem fundos, chegadas ao Banco com pequenos atrasos, dívidas vencidas e não pagas e namoros de casados com as modernas ‘coleguinhas’ recém-admitidas etc.
Nada mais tendo de importante que fazer, eu matava o tempo relendo esses disparates. Às vezes, ria. Outras, revoltava-me. Entre os implicados, alguns estavam mortos havia anos, outros ainda ocupavam inspetorias ou elevados postos na sede do Banco.

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