O salto mortal

Andavam quase em pé de guerra as nossas relações com certos filhinhos de papai da cidade, os quais aos domingos entenderam de invadir o nosso açude para nadar. Ora, se eles não tivessem onde nadar, vá lá! Afinal, não éramos egoístas. Tinham eles a sua piscina limpa, toda calçada em derredor – tão diferente do nosso açude – sem o perigoso atoleiro nos fundos e os velhos troncos de árvore boiando como jacarés. Ainda zombavam do nosso modo de nadar sem qualquer técnica, de peito, de costas, ou à cachorrinho, sem ritmo nem nada, um verdadeiro “salve-se na água quem puder!”, tamanha a confusão dos movimentos dos braços e pernas.
O mais metido e ousado deles era o Délio. Nadava e mergulhava bem. Em nossa turma, não havia quem lhe pudesse fazer frente. De nada me valeu ter engolido em jejum os três lambaris pequenos e vivinhos, simpatia então em voga entre a gurizada, para se aprender a nadar que nem peixe. Debalde, às manhãs, rolando pneus velhos, descia e subia a rua várias vezes, enfiava-me descalço pelos pastos e vales. Diziam que esses exercícios engrossavam as pernas e os braços e criavam resistência e muque.
Éramos grandes. Na verdade, já passara o tempo de nadar em pelo, mas sempre havia os que não tinham calções apropriados, nem queriam ficar o resto da tarde esperando a calça enxugar ao sol, se nadassem com ela. Depois daquele dia em que um meganha, tirado a valentão, apreendeu-nos a roupa e nos dispersou nuzinhos pelo pasto, com tiros para o ar, nenhum menino se atreveu a entrar pelado na água. Mas passam-se os dias. Vem o calor, os companheiros a gritar e a mergulhar na água fresquinha e clara. A tentação vence ao medo à polícia. Os olhos circunvagam ao redor, não se vê nenhuma mulher ou menina por perto. Então, cai fora a camisa, os dedos lépidos escorregam pelos suspensórios. Mais outra olhadela. Por fim, caem também as calças.
– Lá vou eu, também!E tim-bum, tim-bum, tim-bum dentro da água.
Os moleques da cidade, quando viam meninas por perto, viraram uns demônios. Só eles queriam saltar e nadar, rendinhas na cabeça, calções de cores comprados em lojas, bem diferentes de nossas calças velhas, com suspensórios de tiras de panos cruzadas no peito e nas costas.
Sem trampolins, os saltos ou mergulhos eram executados dos altos barrancos marginais. Atira-se um, o seguinte, outro. Certo dia, nem sei como, ao dar o mergulho, cuido que o impulso foi demasiado violento, e meu corpo girou no ar. Choveram aplausos, enquanto eu emergia atabalhoado das águas, depois de ter engolido bons sorvos. Meus amigos me pediram, impuseram que repetisse a façanha.
– Não. Chega por hoje. Outro dia.
No domingo seguinte, voltei ao açude. Sentia-me seguro do meu sucesso – um salto mortal perfeito, terminado por um mergulho. A rapaziada da cidade em peso. Algumas meninas. Não entrei logo na fila dos saltadores. Queria dar-lhes oportunidade de mostrarem primeiro o que iriam exibir. Deixei-os pular à vontade.
Contive-me. A provocação despertou ainda mais o interesse dos espectadores. Como o Délio, alguns julgavam que o salto mortal daquele dia fora casual, e eu seria incapaz de repeti-lo. Até meus próprios amigos duvidavam de mim.
Aproximei-me do barranco, o calção bem ajustado à cintura, encolhi a barriga, estufei o peito, levantei os braços para a frente e desci-os devagar em direção aos pés – procurando imitar os movimentos de um mergulhador que vi no cinema. O salto mortal saiu perfeito. Muitos gritos e aplausos. Por fim, intimei o meu rival a imitar-me:
– Vamos ver, Délio, chegou a sua vez. Agora quero ver se você topa mesmo uma parada comigo.
Ele não respondeu, abaixou a cabeça, enrubesceu. O que poderia resultar da insistência seria um imediato sururu. – Vocês da cidade são uns maricas. Então, querem vir para o braço? – insultamos, com raiva, prontos para a briga.

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