O quintal de casa

Quando nos mudamos da roça para a cidade, eu devia de ter sete ou oito anos. Chegamos empoleirados no velho caminhão que transportava a mudança reduzida a alguns móveis ainda aproveitáveis. Anoitecia. Não me preocupei em conhecer as acomodações da nova morada, se tinha assoalhos de madeira, luz elétrica, água encanada e quartos forrados e suficientes para alojar a família, confortos que não havia na casa onde morávamos.
Na manhã seguinte, bem cedinho e antes de tomar café, fui conhecer o quintal. Caminhava descalço, a contar uma a uma as árvores frutíferas. Crescia o meu entusiasmo, à medida que as ia identificando, carregadas de frutas e com a variedade de pássaros pousados em seus galhos.
– Puxa vida, quanto passarinho vou caçar!
O mato crescido e entrelaçado dificultava-me a caminhada. Mandacarus floridos e rodeados de abelhas zumbindo serviam de cercas em longos trechos, substituindo os moirões apodrecidos.

II
A custo, cheguei aos fundos do quintal, os pés já cheios de espinhos. Ao longo da cerca, do nosso lado, descia estreito riacho, parcialmente encoberto pelo capim das margens.
– Meu Deus! Que beleza que encontrei! – exclamei, boquiaberto.
Não resisti à tentação de vadeá-lo. Arregacei a calça e meti-me na água. Não era fundo. Minha primeira providência foi limpar as margens. Meus pais não se incomodavam quando me viam dentro dele. Afinal, não era rio caudaloso, cheio de grossos troncos escuros, que desciam silenciosos, boiando como jacarés. Era inofensivo, de águas claras e mansas, rolando, sempre rolando.
Nas chuvas, as águas do riacho avolumavam-se. Eu e o mano Pedro pescávamos de peneira fina os minúsculos lambaris e peixes-sapo, para jogá-los no tanque à porta da cozinha.
– Espanta eles para cá! Acho que um baita de cascudo está na peneira. Agora, mais devagar. Eu já vejo eles bem perto. Puxa vida, quanto lambari!

III
Chegando da escola, mal comia alguma coisa, corria para trepar nas árvores. Havia as de galhos mais adequados para eu estudar as lições longe dos manos, as de fazer os exercícios de barra, para criar muque e não apanhar de qualquer moleque metido a valente. Nas mais altas e copadas, eu me escondia de meus pais, quando descobriam algumas de minhas travessuras na rua ou na escola. Nessas ocasiões, minha mãe saía ao terreiro, olhava para um lado e outro e gritava repetidas vezes o meu nome.
– Jaime! Jaime! Onde você está? Será que o moleque ainda não chegou da escola? Deve estar aprontando alguma confusão.
Eu me fazia de surdo, embora achasse que não estava agindo direito. Deveria responder logo, descer da árvore e aparelhar-me para receber o castigo, o mais das vezes bem merecido, mas que nem sempre vinha.

IV
Um domingo, de manhã, vi passar na rua um pelotão de soldados do tiro de guerra. Bela farda. Borzeguins lustrosos, fuzis nos ombros. Cheguei a invejá-los, por não estar entre eles. Afinal, eu podia considerar-me um pequeno soldado. Meu uniforme era a camisa aberta ao peito e a calça remendada; os pés, sempre descalços e sem a proteção de borzeguins; as armas, os dois estilingues; a munição, as pedrinhas apanhadas nas margens do rio. As armas e as munições, eu sempre as levava nos bolsos para caçar passarinhos, como se fossem meus inimigos. Quantos indefesos cacei! A cada morte, com o canivete eu fazia um corte na forquilha para depois mostrar aos amigos e vangloriar-me do feito. Um dia, somando as mortes anotadas nas forquilhas, senti remorsos. Pedi perdão a Deus e procurei a remição de meus crimes. Quebrei as forquilhas, arrebentei os elásticos e, com a munição, atirei tudo nas águas do riacho. Nunca mais cacei. Durante algum tempo, ainda não me sentia remido de meus crimes.

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