O de costume

Fazia quinze dias que eu estava em férias escolares na casa de meu avô Juca. Aos sábados, à noite, ele e seus amigos costumavam reunir-se no restaurante de idosos para ouvir tangos e boleros. Quer ir comigo esquentar o estômago, Walter? – perguntou meu avô, contente, esfregando as mãos uma à outra.
– Se quero? Lógico, que quero! – respondi. Minha avó, por perto, logo estrilou: onde se viu sair de casa com todo esse frio? Você não tem miolos, Juca? Os jantares costumam demorar, e uma criança não aguenta ficar de estômago vazio, ouvindo macacoas de gente velha. Afinal, já crescidinho, com os bem contados 15 anos, não queria perder a oportunidade de privar com gente de mais idade e ouvir relatos de experiência de vida que nós jovens nem imaginamos. E variar de comida. Chegamos ao restaurante. Logo de início, despertou-me a curiosidade a ambulância estacionada à porta: vovô, por que a ambulância parada ali? O restaurante a contrata para casos de emergência, em dias de movimento. Às vezes, colegas mais gulosos abusam e engolem algumas letrinhas a mais. Letrinhas? Que letrinhas? Não se apresse! Logo você vai ficar sabendo. Na sala de jantar, os cumprimentos de meu avô com a cabeça, os olhos buscando localizar a mesa dos companheiros. De passagem, um dedo de prosa com um, uma conversa com outro, abraços, aperto de mãos. Este é meu neto Walter, com ‘w’ apresentou-me meu avô Juca. Chegou de Minas e vai passar alguns dias comigo. Ora! Ora! Muito prazer! Como tem passado o Walter, com ‘w’? Bem, obrigado! respondi meio acanhado. Sentamo-nos à mesa.
Alguma novidade, depois de nosso último encontro? perguntou-lhes meu avô. Assim. Não me tenho sentindo bem com esse frio – respondeu um deles. Respiro com dificuldade. O Dr. Benê já me proibiu fumar, mas não deu a receita que seria ‘tiro e queda’ para eu deixar o cigarro. Já deixei de fumar centena de vezes – interveio outro, sorrindo. Depois daquela esfrega que me combaliu, tenho procurado evitar a repetição do desastre. Como diz o ditado: “gato escaldado de água fria tem medo”. O meu problema é o raio do colesterol – reclamou outro. Tenho feito o maior sacrifício para mantê-lo domado dentro de seus limites. Falou certo. O colesterol não dá nenhum aviso. Se os ‘engenheiros’ da cirurgia não acodem logo, construindo pontes de safena. Nem é bom pensar no resultado. Eu os ouvia mortificado. Em conversa de gente grande, criança não mete o bedelho, dizia minha mãe. Àquela altura, mais de 8h da noite, eu já me havia arrependido de não ter dado ouvidos a minha avó e ficado quietinho em casa. Eu costumava jantar às 6h. A conversa parecia nunca chegar ao fim. Só doenças e remédios. Eu não podia imaginar como em corpos tão franzinos, como os de alguns deles, pudesse habitar tamanha variedade de moléstias e dores. Sentia o cheirinho apetitoso que vinha das mesas vizinhas. Feijoadas, leitoas, espetos de pintado, pernil assado constavam do cardápio bem visível à entrada do restaurante. Meu estômago foI suportando como pôde. Coitado! Gemia, roncava, gritava, e eu sem recursos para socorrê-lo. Felizmente, a conversa foi-se esfriando. A um sinal de meu avô, o garçom aproximou-se de nossa mesa e perguntou: já posso servir ‘o de costume’, doutor?
– Sim, sem tirar nem pôr. O garçom apareceu em seguida com a panela fumegando e a depôs na mesa. Confesso que mal contive o ímpeto de servir-me primeiro, tamanha a fome. Não o fiz por respeito aos mais idosos. Meu avô Juca destampou a panela. Cheirou-a demoradamente, estalou a língua. Um sorriso de criança esfaimada alumiou-lhe a fisionomia. A panela com certeza continha a tradicional feijoada, própria das tão frias noites, foi o que pensei e até louvei a inteligente escolha. Como eu era louco por feijoadas! Sopa de macarrão? perguntei, procurando ao mesmo tempo ocultar meu desapontamento. Sim. Muito saborosa. Garanto que vai gostar. Meu avô e os amigos, agora mudos, devoravam ‘o de costume’ com insaciável gula. Para disfarçar minha decepção, ora eu levava a colher vazia à boca, ora tentava formar meu nome, procurando no fundo do prato as letrinhas de macarrão da fumegante sopa. Mas havia muitas repetidas, e eu não encontrava o ‘w’, por mais que fixasse os olhos e remexesse com a colher o fundo do prato. Será que excluíram o ‘w’ até nas sopas? perguntei-me, enfezado. Tomaram toda a sopa da panela. Não se salvou nenhuma vogal ou consoante. Limpando a boca com o guardanapo e a afrouxar o cinto que lhe comprimia a barriga avolumada com os milhares de letrinhas ingeridas, meu avô pediu a conta, sorrindo e satisfeito da vida.

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