O carro do delegado

Depois que o Delegado comprou o velho Ford, sua vida tornou-se um inferno. No início, os problemas financeiros. Depois, os familiares. O raio do carro não conseguia passar indiferente à porta de qualquer oficina, sem empacar um bom tempo, até à chegada do mecânico para bulir em suas peças e cobrar um dinheirão. Mais parecia um cachaceiro à procura de um boteco para tomar uns goles e esquecer os problemas da vida.
– Em maldita hora, adquiri esta lata-velha. Assim, vou logo à falência – vociferava ele.
– Qual lata-velha, Doutor! Seu Ford é uma joia, apenas precisa de pequena revisão, de vez em quando – animou-o o mecânico.
Feitos os reparos, o motor entrou a funcionar silencioso como relógio novo. Aí, começaram os problemas familiares. O Delegado tinha uma santa família, até a compra do malfadado Ford. Antes de possuí-lo, todos de casa andavam pela cidade a pé e não se queixavam de canseiras nem de distâncias. Agora, tudo mudou. Até o bem comportado reumatismo da sogra agravou-se e não a deixava caminhar até a igreja para assistir a todas as missas. As crianças perderam o endereço da escola, a poucas quadras de casa. Tudo era de carro e o único motorista era o Delegado.
O Delegado chegou até a pensar em vender o veículo. Não tinha coragem de abrir a boca, com receio de a mulher aprontar um escarcéu de todo o tamanho e até ameaçá-lo de separação.
– Até quando vou aguentar este inferno de vida! – lamentava.
Como de costume, na delegacia problemas avultavam para o Delegado resolver. Por causa de um Fusca, levaram ao seu gabinete um homem preso, por tentativa de furto.
– Doutor, este pilantra tentou surrupiar um Fusca, aqui bem perto da delegacia – disse o policial. Recebemos um telefonema dizendo que um desconhecido estava rondando o veículo, e chegamos a tempo de agarrar ele…
– Com todo respeito, Doutor, não é verdade. Eu apenas admirava a conservação e beleza do Fusca, nem encostei o dedo nele.
– Como precaução, sou forçado a detê-lo, até esclarecer melhor os fatos – decidiu o Delegado.
– Eu ficar preso, Doutor? Não cometi nenhum crime. Meu nome é Benevides da Silva, tenho comigo todos os documentos. Moro em Goiás…
– O que veio fazer por estas bandas?
– Procurar serviço. Fui chofer de praça muitos anos. Um acidente por pouco não acabou comigo. Fiquei sem carro e nenhum vintém nos bolsos.
– Acaso, não veio de tão longe para levar daqui um carro?
– De jeito nenhum, Doutor. Sou homem atrasado e pobre, mas não burro a ponto de levar o Fusca, em vez do Ford muito mais novo e valioso, com as portas apenas encostadas e a chave no contato…
– Ford? Que Ford é esse, Sr. Benevides? – espantou-se o Delegado.
– O amarelo estacionado bem ali debaixo da árvore.
– Aquele é o meu carro. Eu o deixei aberto e com as chaves dentro?
– Pois é, Doutor, se eu estivesse a fim de roubar um carro, teria levado o seu com a maior facilidade. Isso prova a minha inocência.
O dono do Fusca, presente aos diálogos, condoído da situação do acusado e crendo mesmo em sua inocência, intercedeu por ele:
– Se me permite, doutor, retiro a queixa. Afinal, o carro está comigo, não houve nenhum dano, e não quero carregar a culpa de desgraçar ainda mais a vida deste homem.
– Está bem – concordou o Delegado. Vou dar o caso por encerrado.
– Então, Doutor, estou livre? – perguntou muito aliviado o Sr. Benevides.
Naquele momento, relampejou na cabeça do Delegado uma ideia. Com a voz branda, pediu ao Sr. Benevides que esperasse mais um pouco. Quando estavam a sós, fechou cuidadoso a porta do gabinete e dirigiu-se ao homem espantado.
– Sr. Benevides, sua situação é um tanto melindrosa. Estou mesmo inclinado a acreditar na sua inocência. Mas, como Delegado experiente, cabe-me o dever de investigar melhor o ocorrido, a não ser que…
O Sr. Benevides arregalou os olhos. Não sabia aonde queria chegar o Delegado com aquele “a não ser que…” cochichado a portas fechadas. O coração aos pinotes, o Sr. Benevides escutou a proposta, sem crer no que ouvia de uma autoridade. Quando percebeu sem sombra de dúvida todo o fio da trama, começou a suar frio e a perder a voz.
– Entendeu bem o negócio que lhe proponho? – perguntou o Dr. Delegado.
– Entendi muito bem, Doutor. Acaso não me está pondo à prova, para meter-me de uma vez no xilindró? Eu nada fiz de errado. Desculpe-me, mas não posso aceitar a sua proposta.
– Bem, a decisão é sua. Liberdade já, e com as vantagens oferecidas, ou grades por não sei quanto tempo.
– Tenho pavor de grades. Se não tem outro jeito, vou fazer como o Doutor manda e aguardar as consequências. Deus é a testemunha da minha inocência.
– Quando escurecer, bom amigo Benevides, você vai encontrar o meu Ford debaixo daquela árvore, com o tanque cheio, uma das portas apenas encostada e as chaves no assoalho. Aqui estão os documentos e dinheiro para as despesas de viagem. O carro é seu. Leve-o para bem longe, para Goiás, para os quintos, até aonde ele aguentar e nunca me apareça com ele por aqui.

Nege Além
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