O caco de telha

Choveu quase todos os dias da semana. Nós, meninos, não podíamos jogar piões e bolinhas de gude na terra encharcada, nem empinar papagaios. Eu ansiava por qualquer distração que me tirasse de casa.
O sábado amanheceu com sol.
– Vamos caçar passarinhos no quintal? convidou-me o mano Pedrinho. Armamos o alçapão e a arapuca. Agachados atrás das árvores, começamos a espreitar a aproximação dos pássaros.
– Psiu! Fique calado, Pedrinho. Um canarinho cabeça de fogo está no galho daquela árvore. O canário saltou da árvore à gaiola, espantou-se e voou para longe. Cansado de esperar à sua volta, ou a de outros, achei melhor entrar em casa e terminar os deveres da escola, quando alguém me chamou do outro lado da cerca. Era o Abílio, menino gorducho e descorado. O que você quer, Abílio? – perguntei por perguntar, sem nenhum interesse em saber o que ele queria. Olhe ali.
O Abílio apontou o braço para o quintal da vizinha D. Margarida. Vários sabiás no mamoeiro bicavam as frutas. Minha mãe proibiu que brincássemos com o Abílio. Vamos derrubar os sabiás a pedradas. Cada um pega uma pedra – ordenou o irrequieto moleque.
Começamos o bombardeio, eu do quintal de casa, ele no de sua. Os sabiás voejavam em redor do mamoeiro, iam embora e voltavam logo em seguida. E as pedras continuavam a cair. Ao ouvir o barulho na cobertura de zinco da cisterna de sua casa, D. Margarida saiu ao terreiro, viu-nos e pediu, com brandura, que parássemos de atirar pedras.
– Velha entojada. Enquanto eu não derrubar um sabiá, não sossego. Quero ver quem manda. Estou no quintal de minha casa.
Dizendo uma porção de palavrões, o Abílio sumiu entre o arvoredo de seu quintal.
Eu continuei a caça. A teimosia dos sabiás, a nossa má pontaria e o vexame de nenhum caçador tê-los atingido com tantas pedradas, tudo contribuiu para eu não desistir de derrubar ao menos um. D. Margarida virou as costas e dirigiu-se para o tanque ao lado da porta da cozinha. Eu a perdi de vista. O Abílio tinha razão. Desaforo mesmo. Agora, é que vou derrubar um sabiá.
Mirei bem o alvo e arremecei com toda força uma pedra. Depois, outra e mais outra. Nunca acertava o alvo. Não demorou muito, o mano Pedrinho gritou, branco de susto:
– Nossa mãe! D. Margarida caiu perto do tanque. Acho que alguém acertou uma pedrada na cabeça dela. E se eu errei a pontaria? Tremi de medo, com a dúvida. Cuidei logo de correr para casa. Fechei-me no quarto. Eram 4 horas da tarde. Antes, os dias tão curtos mal davam para eu molecar um pouco e depois estudar os pontos da escola. Agora, o tempo da ansiosa espera arrastava-se tenebroso e não acabava mais. O mano não tinha sossego. Ora estava comigo, ora na rua, sempre me trazendo informações que eu não queria ouvir.
– Chi! A casa dela está cheia de gente. Ouvi dizer que chamaram um médico e deram parte ao delegado. O que você vai fazer.- Sei lá! Se fui eu o culpado, esperar o castigo.
A mais recente notícia do Pedrinho: o médico disse que foi um caco de telha que feriu a cabeça da mulher. Eu acho que foi você. Tá maluco, eu não atirei nenhum caco de telha, só pedras. Será que não foi o Abílio? Minha situação complicava-se a cada momento. À espera do delegado, com dois carrancudos meganhas, bater à porta de casa e levar-me preso era o começo de minha expiação.
Meu pai trabalhava no comércio. Se algum motivo o retesse no serviço até a noite, ele não chegaria a tempo de encontrar-me acordado. Era nosso costume ir cedinho para a cama. Embora soubesse do ocorrido, e eu o culpado, talvez deixasse o castigo para a manhã seguinte. Enquanto isso, arrefecia-lhe a cólera, e o castigo seria mais brando. Impossível ficar impune.

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