Aprendiz de Sapateiro

Comecei a trabalhar de aprendiz de sapateiro na oficina do Sr. Aristides, antigo conhecido de meu pai, com o salário de dez cruzeiros por semana.
Uma babilônia a oficina. Bancas ao longo do salão e variado tipo de ferramentas. O soalho atapetado de retalhos de couro, sola e papelão. Pregos e taxas por todos os lados.
Fui logo designado ajudante do Sr. Pépi, o chefe da oficina, um italiano de meia-idade, rosto vermelho e grosso de corpo, excelente sapateiro e melhor consumidor de cachaça. O patrão, à parte, recomendou-me que fosse obediente ao Sr. Pépi, prestasse atenção às suas explicações e nunca mexesse nas ferramentas dele, principalmente no afiador de facas.
– Sim, senhor. Ouvi bem.
Era costume dos sapateiros mais antigos exagerar a raridade de algumas de suas ferramentas. Tinha este uma tenaz alemã; aquele, um bisegre de madeira africana; aqueloutro, um pé-de-ferro fundido na Itália. O Sr. Pépi elogiava o seu afiador de facas, uma pedra cor de chumbo, formato de charuto grande, sem conhecer-lhe a nacionalidade. Para ele, não havia outro que o substituísse nem ao menos se igualasse e conservava-o azeitado dentro do estojo de madeira já puído do tempo.
– Sabe, menino, isto foi tudo quanto herdei de meu saudoso pai. Esta pedra é o meu tesouro. Por ela, sou capaz de fazer o diabo.
Não tardou muito, começou o Sr. Pépi a troçar de mim diante dos empregados. Gostava de chalacear, de vê-los rir à custa do novo aprendiz. Mandava-me fazer serviços absurdos, como mexer água suja até virar cola. Diariamente, eu batia sola horas a fio, sem necessidade, um toque-toque interminável que me feria os ouvidos e deixava ardendo os joelhos por vários dias. O homem dava o cavaco por um trote, macaqueava no salão, repetia anedotas picantes, sem importar-se com a presença de quem quer que fosse. E ria alto, e gargalhava. Ninguém o censurava. Ao contrário, riam também, porque toda asneira dita por um superior tem de ser aplaudida pelos subordinados.
Nas ocasiões em que chegava mais embriagado à oficina, tornava-se intolerável e perigoso. Roçando a faca em meu pescoço, com certo terror macabro nos olhos congestionados pelo álcool, perguntava:
– Quer morrer agora, menino?
– Não brinque assim, Sr. Pépi. Não quero morrer, não. Sou muito novo.
Eu vivia apavorado. Antes de entrar na oficina de manhã, ou na volta do almoço, persignava-me e rezava o pai-nosso e a ave-maria, para não encontrar bêbado o Sr. Pépi.
Uma segunda-feira, o Sr. Pépi chegou à sapataria mais embriagado que de costume. Cambaleando no salão, encaminhou-se para a sua banca, a tropeçar em pequenos rolos de sola. E resmungava, e proferia palavrões. Agarrou-se com as mãos na banca e começou a tentativa para acomodar-se
Foi a primeira vez que me encontrei sozinho na banca. Sentei-me imponente no próprio lugar do Sr. Pépi, olhei para os lados, a ver se o Pedrinho ou outro aprendiz invejoso me observava. Por instantes, tive a presunção de ser um competente oficial de sapateiro.
Vi no fundo da gaveta, bem guardado, o estojo do afiador de facas. Agora, eu tinha tempo de sobra para examiná-lo. Quando o quis tocar, pareceu-me ouvir a voz do Sr. Pépi: “esta pedra é o meu tesouro, menino. Por ela sou capaz de fazer o diabo.” Ora, uma simples pedra, como tantas outras na oficina! Entretanto, sentia-me curioso de experimentá-lo. Acaso teria ele algum poder mágico de afiar as facas melhor e diferente dos outros? Peguei no estojo. Parecia estar profanando uma relíquia sagrada. Minhas mãos tremiam tanto que, ao abrir o estojo, o afiador caiu bem em cima do pé-de-ferro e partiu-se ao meio.
– Nossa Mãe! Estou perdido! – exclamei, horrorizado, procurando conter a voz, para não ser ouvido.
A ponto de sofrer um desmaio, apanhei os pedaços e logo os recolhi ao estojo. O suor porejava-me do rosto, o pavor dominou-me. Cuidei de colar as partes, mas quem não daria pela emenda logo à primeira vista? No momento, não me prestava a nenhum trabalho. Ninguém presenciou o desastre. Isso, porém, não me isentaria do castigo.
Nos dois dias após o incidente, não fui trabalhar. Fiquei zanzando pelas ruas e voltava para casa às horas do costume. Pagaria caro por minha curiosidade e desobediência. Por nada, o Sr. Pépi roçava-me a faca na garganta…

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