A Vingança

Raramente havia brigas entre os meninos da Rua Taboão. Éramos todos amigos. Eu gozava de prestígio, talvez por ser o único que possuía bicicleta e bola de capotão.
Num sábado, chegou à rua a mudança de novos moradores. Curiosos, todos corremos a espiar. Logo nos tornamos conhecidos do Berto, o filho único da família recém-chegada da roça. Um jeca, mais velho que eu três ou quatro anos, alto e forte. A pouco e pouco, ele se foi infiltrando em nossa turma. Lia meus livros de história, brincava com os meus carrinhos. Tinha pena de vê-lo tão pobre e sem nenhum futuro habitar um cômodo de meia-água em fundos de quintal.
Como se não bastasse minha amizade e estima por ele, ou porque entrou a inveja e a cobiça a dominá-lo, começaram desde logo suas petições:
– Alcides, você me dá estas bolinhas de gude?
– Dou sim, Berto. Pode levar.
Depois, levou a peteca, o bilboquê. Não tardou em ir ao exagero de pedir-me a bicicleta. Não foi fácil consegui-la de meu pai, tive de prometer-lhe estudar com afinco e não repetir ano.
– Não posso dar a bicicleta, Berto. Dou a bola de capotão, ou outro brinquedo qualquer. Pode escolher.
O Berto nada compreendeu. Queria a bicicleta. Ficou de mal comigo e começou a provocar-me. Se me visse passar de bicicleta, ele se punha de lado, torcia o guidão, eu voava longe.Sua figura impunha respeito, e eu não me encorajava a enfrentá-lo.
Acabou a minha tranquilidade. Bastava eu sair à rua, para o moleque azucrinar-me. Ora, eu queria brincar com os amigos e não me sujeitei a prender-me em casa por causa dele. Eu estranhava que ele, já em idade de trabalhar e de família pobre, vivesse entre menores, tramando intrigas.
A princípio, meus amigos chegaram a revoltar-se contra o intruso, porém, reconhecendo sua superioridade nas brigas, a maioria aliou-se a ele. Em pouco tempo, caí em descrédito. Até os pequenos agora começaram a insultar-me, sem qualquer razão, induzidos pelo Berto. Este riscava dois círculos na terra e apontando um de cada vez dizia:
– Esta é a mãe do Francisco; aquela, a do Alcides. Quem for mais homem, cospe e pisa na mãe do outro!
O meu adversário, muito mais fraco que eu, fiado na proteção do Berto, pisava e cuspia em minha mãe. Eu me torturava, porque ela era falecida, e sua memória ultrajada. Aquela vez, não tive mãos em mim e reagi, mas o Berto logo tomou as dores pelo Alcides, e eu fugi acovardado.
Se eu o vencesse numa briga, teria restituída a liberdade e o prestígio. Animado com essa remota possibilidade de reabilitação, comecei a fazer ginástica de manhã num galho do pessegueiro de casa, a tomar banhos frios. À noite, trancado no quarto, diante do espelho, dava sopapos a esmo, desviava-me de chutes e socos imaginários.
Em meados de janeiro, fui com meu pai à fazenda de um seu amigo. Fiquei na roça menos de uma semana. Voltei às vésperas de embarcar para o internato em São Paulo. Levei comigo a covardia e os insopitáveis desejos de enfrentar o Berto.

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